Testemunho de João Gomes da Silva no Fórum da Maia
João Gomes da Silva
Fórum da Maia, 22 de Março de 2025
Um dos aspectos que me fascinaram muito quando o Nuno Miguel Borges me abordou para começar a discutir aquilo que podia ser o primeiro livro, que era relativo ao Terminal de Cruzeiros [Lisboa], uma obra arquitectónica de João Luís Carrilho da Graça, foi esta ideia bastante diferente de fazer livros sobre arquitectura, relacionados com a arquitectura no seu sentido mais lato. Eu sou arquitecto paisagista e participei em dois desses projectos [Terminal de Cruzeiros de Lisboa e Termas Romanas de São Pedro do Sul], e aquilo que me fascinou muito foi a diferença relativamente ao que é normalmente fazer um livro sobre arquitectura, ou sobre uma determinada obra em arquitectura, isto é, focar-se mais na obra em si, em todo o processo relativo à sua concretização, desde aquilo que precede o início da construção, a tudo aquilo que se sucede ao longo da construção, no fundo o momento que representa. Há uma expressão em inglês que é the after life desses lugares, que é quando saem das mãos de quem os constrói, de quem os imagina, e passam para as mãos de quem os visita, utiliza, ou gere, enquanto espaços que se destinam depois a um determinado uso ― neste caso concreto da Fundação Gramaxo, um uso cultural. E, portanto, esta ideia de se focar sobre uma obra e não necessariamente sobre os seus autores pareceu-me uma ideia muito interessante, pois isso permite um deslocamento não só conceptual em relação ao livro, mas também um deslocamento do ponto de vista que o livro veicula, que é a partir de diversos olhares.
No caso do livro do Terminal de Cruzeiros, ouve conversas com os dois autores relativamente à totalidade do projecto, o terminal e o seu espaço envolvente. Houve um olhar muito interessante de um historiador, José Sarmento de Matos, que falou do que é um cais e explicou um bocado aquele lugar. Um lugar que na sua origem estava um pouco além da posição que hoje tem, a margem de Lisboa, estava um pouco para dentro, era uma praia, e o porto era no fundo uma praia. Portanto, ele falou um bocado da cidade que se foi construindo em torno desse lugar e depois do modo como progressivamente esse espaço, esse espaço de margem de um rio, que é um espaço de paisagem urbana neste caso, se foi constituindo, e essa visão que só um historiador consegue dar foi muito interessante porque parece ter construído o antecedente daquele lugar actual. E depois, o olhar que o António Júlio Duarte trouxe para o livro, que foi um olhar completamente independente, como uma espécie de ensaio visual, provavelmente com muitas outras dimensões, mas um ensaio que se torna independente daquilo que é, digamos, o discurso que o arquitecto, neste caso o arquitecto paisagista também, pode ter sobre o edifício em si. Portanto, o livro surge um pouco como uma espécie de olhar convergente e autónomo, em que todos os pontos de vista são bastante autónomos e têm os seus instrumentos de leitura, de comunicação. De forma completamente independente, vão construindo a ideia do que é aquele lugar, não só o lugar arquitectónico, mas também o lugar urbano, o lugar, naquele caso, de paisagem, porque estamos no contacto entre terra e água, portanto num lugar de transição. No ensaio do António Júlio Duarte, fala-se de dimensões às vezes um bocado intangíveis, por exemplo quando existe uma certa neblina porque o estuário está cheio de humidade, ou quando existe, durante o processo de construção, uma situação de relativo abandono de uma doca ― a Doca do Jardim do Tabaco.
Os sítios têm momentos de apropriação e de abandono, pelo que essa ciclicidade e essa espécie de prolongamento no tempo do mesmo lugar, dos vários tempos no mesmo lugar, foram trazendo imagens que nos fazem sentir, e também pensar e olhar, o próprio processo de transformação que é a obra. Para um arquitecto, ou para um engenheiro, ou para um arquitecto paisagista, a obra é um período transitório entre aquilo que foi todo o trabalho de pensamento, de elaboração, de articulação entre os vários agentes, e depois é uma espécie de período em que o projecto, que é uma ideia graficamente explícita, ganha vida própria. Portanto, o tempo de obra é um tempo que me dá uma enorme felicidade e ao mesmo tempo muitas zangas, mas é um tempo em que eu consigo sentir muito aquilo que se está a passar e todas as contradições e todas as tensões e lutas que se geram numa obra entre os vários intervenientes, e que depois conduzem a uma situação que aparentemente é cristalizada, mas na verdade não está cristalizada no fim de uma obra, quando acabam de se pintar as paredes, fazer os acabamentos e instalar o mobiliário, no caso da Fundação Gramaxo. Ele prolonga-se, não se fica apenas pelo espaço arquitectónico, prolonga-se muitas vezes pelo vários elementos que são propostos instalar. Por isso, é uma espécie de continuidade após aquilo que tradicionalmente se chama o fim de uma obra em arquitectura. E nesse aspecto, esta espécie de liberdade de cada um dos contribuintes para o livro cria uma narrativa muito complexa e muito aberta, não se encerra numa cristalização final, que tradicionalmente é o que os livros de arquitectura fazem ― de repente, há um objecto, chegamos aí e somos felizes porque o conhecemos e tal, e o arquitecto porque acabou a obra e a transmite à comunidade e depois a quem a vem utilizar.
No caso da Fundação Gramaxo, eu não participei nesse projecto, nem sequer acompanhei a obra, fui conhecê-la um pouco antes do final com o Nuno Miguel Borges. Mas aquilo em que eu tive oportunidade de reflectir através do texto que o Nuno me pediu foi o modo que o próprio arquitecto Álvaro Siza tem de lidar com esta espécie de incerteza, esta espécie de energia inicial que tem muito que ver com o decifrar o sítio, com o tactear, penso que é essa a expressão que eu uso. Eu acho que ele tacteia, faz assim uma espécie de aproximação muito primária ― quando nascemos, a primeira coisa que todos nós fazemos é tactear, mexer nas coisas, perceber a temperatura, a textura. Eu acho que de alguma forma ele faz isso. É fundamental num trabalho de qualquer arquitecto a localização e depois a implantação em si. Neste caso, a localização situa num determinado contexto mais vasto e depois na Quinta da Boavista, e depois a ideia de a localizar no percurso que vai do portão de entrada até ao pátio da casa mãe, o chamado centro de lavoura, e aquele percurso que ele escolhe, de que ele se apropria, com o tanque e os elementos que pertenciam à própria constituição da quinta. Uma quinta é uma construção muito complexa, é preciso ter tanques, a água tem de ser distribuída, enfim, a agricultura é uma construção, e o modo como ele depois decide não se impor de maneira muito directa, mas reservar para si um espaço ligeiramente recuado em relação a esse acesso directo, e como começa a relacionar-se com objectos e elementos que fazem parte daquela paisagem, como sejam o tanque, as árvores que lá existiam e que ele selecciona e escolhe, e depois aquela proximidade com aquilo que ele definiu como um espaço natural, no fundo aquela plantação muito densa de árvores que de alguma maneira ajudam a construir uma espécie de abrigo ou de envolvimento de acolhimento ao edifício e que cria um contexto também imediato. A própria localização ao longo da linha de festo, a linha mais elevada, de cota mais elevada, e a sua implantação com todas essas certezas que se vão construindo à medida que ele trabalha. Acho que no texto me refiro bastante às piscinas de mares de Leça e à Casa de Chá porque sinto que são projectos que se constroem, isto não é retórica, é diálogo verdadeiro com os elementos que estão no sítio. Se pensarmos nas piscinas ou na Casa de Chá… Quer dizer, hoje é possível ter um levantamento concreto, rigoroso, da forma das pedras porque temos esta tecnologia de nuvens de pontos, nós conseguimos reproduzir a realidade tridimensionalmente e conseguimos observá-la e com isso estudar, mas imagino que naquele tempo, em 1962–1963, havia um levantamento topográfico que era bastante genérico. Esse tipo de obra faz-se escolhendo, tacteando o sítio mais uma vez, escolhendo exactamente, sinalizando alinhamentos, posições, cotas, etc., e imagino que seja uma dimensão presente desde o início do seu trabalho como arquitecto, e fundamental e decisiva em muitas das obras que tem feito até agora. O texto fala muito brevemente destes aspectos, mas de alguma maneira é também aquilo que eu recolho ao longo destes trinta e tal anos em que fui podendo colaborar com o Siza em várias circunstâncias, e porque sou arquitecto paisagista, não sou arquitecto, fui construindo um diálogo a que ele sempre se mostrou atento, interessado, e muitas vezes exigente.