06 09 2025

Testemunho de João Gomes da Silva no Fórum da Maia

João Gomes da Silva Fórum da Maia, 22 de Março de 2025

Um dos aspectos que me fascinaram muito quando o Nuno Miguel Borges me abordou para começar a discutir aquilo que podia ser o primeiro livro, que era relativo ao Terminal de Cruzeiros [Lisboa], uma obra arquitectónica de João Luís Carrilho da Graça, foi esta ideia bastante diferente de fazer livros sobre arquitectura, relacionados com a arquitectura no seu sentido mais lato. Eu sou arquitecto paisagista e participei em dois desses projectos [Terminal de Cruzeiros de Lisboa e Termas Romanas de São Pedro do Sul], e aquilo que me fascinou muito foi a diferença relativamente ao que é normalmente fazer um livro sobre arquitectura, ou sobre uma determinada obra em arquitectura, isto é, focar-se mais na obra em si, em todo o processo relativo à sua concretização, desde aquilo que precede o início da construção, a tudo aquilo que se sucede ao longo da construção, no fundo o momento que representa. Há uma expressão em inglês que é the after life desses lugares, que é quando saem das mãos de quem os constrói, de quem os imagina, e passam para as mãos de quem os visita, utiliza, ou gere, enquanto espaços que se destinam depois a um determinado uso ― neste caso concreto da Fundação Gramaxo, um uso cultural. E, portanto, esta ideia de se focar sobre uma obra e não necessariamente sobre os seus autores pareceu-me uma ideia muito interessante, pois isso permite um deslocamento não só conceptual em relação ao livro, mas também um deslocamento do ponto de vista que o livro veicula, que é a partir de diversos olhares.

No caso do livro do Terminal de Cruzeiros, ouve conversas com os dois autores relativamente à totalidade do projecto, o terminal e o seu espaço envolvente. Houve um olhar muito interessante de um historiador, José Sarmento de Matos, que falou do que é um cais e explicou um bocado aquele lugar. Um lugar que na sua origem estava um pouco além da posição que hoje tem, a margem de Lisboa, estava um pouco para dentro, era uma praia, e o porto era no fundo uma praia. Portanto, ele falou um bocado da cidade que se foi construindo em torno desse lugar e depois do modo como progressivamente esse espaço, esse espaço de margem de um rio, que é um espaço de paisagem urbana neste caso, se foi constituindo, e essa visão que só um historiador consegue dar foi muito interessante porque parece ter construído o antecedente daquele lugar actual. E depois, o olhar que o António Júlio Duarte trouxe para o livro, que foi um olhar completamente independente, como uma espécie de ensaio visual, provavelmente com muitas outras dimensões, mas um ensaio que se torna independente daquilo que é, digamos, o discurso que o arquitecto, neste caso o arquitecto paisagista também, pode ter sobre o edifício em si. Portanto, o livro surge um pouco como uma espécie de olhar convergente e autónomo, em que todos os pontos de vista são bastante autónomos e têm os seus instrumentos de leitura, de comunicação. De forma completamente independente, vão construindo a ideia do que é aquele lugar, não só o lugar arquitectónico, mas também o lugar urbano, o lugar, naquele caso, de paisagem, porque estamos no contacto entre terra e água, portanto num lugar de transição. No ensaio do António Júlio Duarte, fala-se de dimensões às vezes um bocado intangíveis, por exemplo quando existe uma certa neblina porque o estuário está cheio de humidade, ou quando existe, durante o processo de construção, uma situação de relativo abandono de uma doca ― a Doca do Jardim do Tabaco.

Os sítios têm momentos de apropriação e de abandono, pelo que essa ciclicidade e essa espécie de prolongamento no tempo do mesmo lugar, dos vários tempos no mesmo lugar, foram trazendo imagens que nos fazem sentir, e também pensar e olhar, o próprio processo de transformação que é a obra. Para um arquitecto, ou para um engenheiro, ou para um arquitecto paisagista, a obra é um período transitório entre aquilo que foi todo o trabalho de pensamento, de elaboração, de articulação entre os vários agentes, e depois é uma espécie de período em que o projecto, que é uma ideia graficamente explícita, ganha vida própria. Portanto, o tempo de obra é um tempo que me dá uma enorme felicidade e ao mesmo tempo muitas zangas, mas é um tempo em que eu consigo sentir muito aquilo que se está a passar e todas as contradições e todas as tensões e lutas que se geram numa obra entre os vários intervenientes, e que depois conduzem a uma situação que aparentemente é cristalizada, mas na verdade não está cristalizada no fim de uma obra, quando acabam de se pintar as paredes, fazer os acabamentos e instalar o mobiliário, no caso da Fundação Gramaxo. Ele prolonga-se, não se fica apenas pelo espaço arquitectónico, prolonga-se muitas vezes pelo vários elementos que são propostos instalar. Por isso, é uma espécie de continuidade após aquilo que tradicionalmente se chama o fim de uma obra em arquitectura. E nesse aspecto, esta espécie de liberdade de cada um dos contribuintes para o livro cria uma narrativa muito complexa e muito aberta, não se encerra numa cristalização final, que tradicionalmente é o que os livros de arquitectura fazem ― de repente, há um objecto, chegamos aí e somos felizes porque o conhecemos e tal, e o arquitecto porque acabou a obra e a transmite à comunidade e depois a quem a vem utilizar.

No caso da Fundação Gramaxo, eu não participei nesse projecto, nem sequer acompanhei a obra, fui conhecê-la um pouco antes do final com o Nuno Miguel Borges. Mas aquilo em que eu tive oportunidade de reflectir através do texto que o Nuno me pediu foi o modo que o próprio arquitecto Álvaro Siza tem de lidar com esta espécie de incerteza, esta espécie de energia inicial que tem muito que ver com o decifrar o sítio, com o tactear, penso que é essa a expressão que eu uso. Eu acho que ele tacteia, faz assim uma espécie de aproximação muito primária ― quando nascemos, a primeira coisa que todos nós fazemos é tactear, mexer nas coisas, perceber a temperatura, a textura. Eu acho que de alguma forma ele faz isso. É fundamental num trabalho de qualquer arquitecto a localização e depois a implantação em si. Neste caso, a localização situa num determinado contexto mais vasto e depois na Quinta da Boavista, e depois a ideia de a localizar no percurso que vai do portão de entrada até ao pátio da casa mãe, o chamado centro de lavoura, e aquele percurso que ele escolhe, de que ele se apropria, com o tanque e os elementos que pertenciam à própria constituição da quinta. Uma quinta é uma construção muito complexa, é preciso ter tanques, a água tem de ser distribuída, enfim, a agricultura é uma construção, e o modo como ele depois decide não se impor de maneira muito directa, mas reservar para si um espaço ligeiramente recuado em relação a esse acesso directo, e como começa a relacionar-se com objectos e elementos que fazem parte daquela paisagem, como sejam o tanque, as árvores que lá existiam e que ele selecciona e escolhe, e depois aquela proximidade com aquilo que ele definiu como um espaço natural, no fundo aquela plantação muito densa de árvores que de alguma maneira ajudam a construir uma espécie de abrigo ou de envolvimento de acolhimento ao edifício e que cria um contexto também imediato. A própria localização ao longo da linha de festo, a linha mais elevada, de cota mais elevada, e a sua implantação com todas essas certezas que se vão construindo à medida que ele trabalha. Acho que no texto me refiro bastante às piscinas de mares de Leça e à Casa de Chá porque sinto que são projectos que se constroem, isto não é retórica, é diálogo verdadeiro com os elementos que estão no sítio. Se pensarmos nas piscinas ou na Casa de Chá… Quer dizer, hoje é possível ter um levantamento concreto, rigoroso, da forma das pedras porque temos esta tecnologia de nuvens de pontos, nós conseguimos reproduzir a realidade tridimensionalmente e conseguimos observá-la e com isso estudar, mas imagino que naquele tempo, em 1962–1963, havia um levantamento topográfico que era bastante genérico. Esse tipo de obra faz-se escolhendo, tacteando o sítio mais uma vez, escolhendo exactamente, sinalizando alinhamentos, posições, cotas, etc., e imagino que seja uma dimensão presente desde o início do seu trabalho como arquitecto, e fundamental e decisiva em muitas das obras que tem feito até agora. O texto fala muito brevemente destes aspectos, mas de alguma maneira é também aquilo que eu recolho ao longo destes trinta e tal anos em que fui podendo colaborar com o Siza em várias circunstâncias, e porque sou arquitecto paisagista, não sou arquitecto, fui construindo um diálogo a que ele sempre se mostrou atento, interessado, e muitas vezes exigente.