Testemunho de Ricardo Bak Gordon no Centro de Artes de Sines
Ricardo Bak Gordon
Exposição Siza + Souto de Moura
Centro de Artes de Sines
21 de Junho de 2025
Gostaria de começar por agradecer o convite ao Nuno. Não nos conhecíamos, mas quando percebi do que se tratava, desta exposição e desta série editorial, que imagino que esteja ainda no princípio da sua carreira, embora já com uma densidade muito expressiva, aceitei. Depois, a ideia de voltar a Sines e ao Centro de Artes, que para mim foi sempre uma referência arquitectónica. Esta obra é de facto um edifício singular; cada vez que um tipo se aproxima deste edifício, é sempre uma experiência, porque é um edifício que é cidade ao mesmo tempo, ou seja, em que a cidade atravessa o próprio edifício. Hoje de manhã, por exemplo, estava a dar um passeio e fiquei a saber que o Vasco da Gama tinha nascido ao fundo da rua. Portanto, não vou dizer que foi este edifício que pôs Sines no mapa, porque Sines já está no mapa há muitos anos, mas o facto é ninguém é indiferente a este edifício.
O tema que nos traz aqui é esta exposição, mas, mais do que a exposição, são estas edições. De facto, estes livros têm muitas possibilidades acerca das quais podemos conversar, pelo que participo com muito gosto nesta conversa. Também quero dizer que é um gosto imenso estar aqui com o Gonçalo Byrne e com o Zé Pedro Croft — de vez em quando, ao longo das nossas vidas, calha-nos estar sentados juntos a conversar, e é sempre com muito prazer.
Fazer um livro é cada vez mais um gesto grande, uma vez que as pessoas estão muito afastadas dos livros. E um livro como este, como o Nuno disse, não é um livro de arquitectura, não é um livro que vai publicar projectos de arquitectura, é um livro que é uma espécie de uma caixa de ressonância de uma história, que tem um tempo associado, o que é muito interessante, porque é o tempo da arquitectura. E o tempo da arquitectura não é pouca coisa. Nós, arquitectos, na nossa vida profissional, temos sempre um grande problema: quando nos sentamos pela primeira vez com o cliente, ou vice-versa, quando o cliente, seja ele público ou privado, vem ter connosco, iniciamos uma relação, e temos muita dificuldade em dizer-lhe a verdade. Qual é a verdade? É que vamos estar juntos por sete anos, ou por dez. A maioria dos casamentos hoje em dia dura menos do que isso. Portanto, andamos ali, vamos enrolando. Mas a verdade é que vamos ficar juntos sete, oito anos, por aí fora. O que é muito interessante neste trabalho é exactamente isso, é a coragem de arrancar em conjunto com um processo, e ao mesmo tempo registá-lo nas suas múltiplas fases com um olhar que se importa pelo processo, e isso é uma coisa muito interessante. O tempo tem um valor, e esse valor ser registado é tão ou mais interessante do que ficar à espera da coisa acabada, final, para que se vá registar, porque se perde. É como se nós déssemos saltos e quiséssemos esquecer, ou como se não ficasse registado com um olhar poético, o tempo, o caminho, e esse esforço que é o espaço que medeia entre o ponto A e o ponto B. E, portanto, estes livros falam-nos exactamente disso, de um olhar poético, simultaneamente com esse nível de risco e ousadia de acompanhar o tempo todo que um projecto de arquitectura e uma obra implicam.
II
Eu gostava de falar da questão do tempo, que é o tema que está muito presente aqui. E do desafio de juntar o artista, o fotógrafo, e o arquitecto no caminho de um projecto em continuidade. O fotógrafo vai registar o lugar, os assuntos, com esse olhar poético, ainda sem saber o que vai acontecer com a arquitectura. Porque se começam ao mesmo tempo, e se o fotógrafo começa a ter contacto com o lugar desde a primeira hora do desafio com que o próprio arquitecto é confrontado, há um caminho paralelo, e, portanto, não carece de conhecer o projecto, a obra, o resultado, para poder fazer o seu próprio caminho. Acho que é muito interessante e acho que os livros mostram isso muito bem: no caso do edifício da Fundação Gramaxo, quando aparecem as primeiras fotografias do lugar, do tanque, da árvore, da paisagem e da quinta. E isso leva-nos para outro tema que para mim é muito caro. Recordo-me de uma frase de um arquitecto brasileiro com quem trabalhei proximamente, o Paulo Mendes da Rocha, que dizia que «a arquitectura aprende-se no caminho para a escola», e é esta ideia de que todos nós, juntos, mas cada um, entretanto, por si caminha pelo mundo, e precisa de tempo, mas precisa sobretudo de abrir o seu espírito, e o seu olhar, para cada um destes momentos que estão aqui multiplicados por infinito — uma parede, uma pedra, uma pessoa, uma luz a entrar pela janela, tudo se pode transformar num olhar poético e numa beleza que alimenta o espírito, estando desperto para isso. Eu acho que é muito o que se passa aqui. Há ali uma fotografia que mostra as infraestruturas todas durante a obra do convento, as tubagens de ar condicionado, as tubagens eléctricas… Nós, que vamos continuamente à obra, muitas vezes temos sentimentos dúbios perante esse dirty job, que é aquilo tudo. Mas não para quem tenha essa capacidade de se distanciar um pouco do sofrimento que está implícito em quem quer ver a obra acabada, e conseguir ter esse olhar de dizer esta infraestrutura tem beleza, e tem beleza por várias razões, porque é a própria capacidade de o edifício funcionar, porque é o trabalho deste colectivo de pessoas que juntas estão a montar um puzzle. Desde logo os nossos projectos de arquitectura e das especialidades, aquilo que são os projectos complementares que nós chamamos as especialidades, a estrutura, as instalações hidráulicas, etc., antigamente eram quatro assuntos, quer dizer, era a estrutura, as águas certamente, a climatização era dada pela espessura da parede da abadia que tinha 1,20, e portanto, a questão térmica que estava resolvida, a posição e o saber de pôr uma construção virada numa certa posição de insulação, que apanhasse o sol certo e se protegesse quando era calor a mais. Enfim, hoje à mercê da legislação, da tecnologia, da maneira como nós decidimos complexificar as nossas vidas e de coisas que se inventaram – nós sabemos que estamos sempre a ser controlados à distância por alguém que decidiu que nós queremos viver todos a 22º o ano inteiro. É a coisa mais disparatada. Ou as frutas, esperávamos pelo Verão para comer as cerejas, agora temos todas as frutas no supermercado e estamos sempre a 22º, só que isso tem um custo inacreditável, custo de toda a sorte, mas desde logo esta ideia das infraestruturas. Os edifícios estão cheios de infraestruturas, de climatização, de ventilação. Quer dizer, os edifícios públicos não podem mais contar com a ideia da ventilação natural, de abrir uma janela, porque considerando que há um dia em 365 dias do ano que não pode usar essa ventilação natural, então aplica-se uma regra que diz se não pode nesse dia não pode em nenhum, e venham as tubagens de ar para ventilar o espaço, que é tirar ar de um lado, pôr no outro, essa coisa toda com tubagens gigantes.
Uma coisa extraordinária destes livros são as entrevistas, neste caso quer a do Eduardo Souto de Moura, quer a do Álvaro Siza, que são óptimas entrevistas, longas, maravilhosas, com conteúdo. Deu-me imenso gozo lê-las. A certa altura, o Eduardo fala dessa coisa, que nós arquitectos dizemos sempre, que é os conventos serem das construções mais extraordinárias que nós encontramos no nosso território, e são. São edifícios muito plásticos, quer dizer, foram conventos, universidades, hotéis, escolas, hospitais, ou seja, os conventos, de facto, são uma estrutura construída muito plástica e programaticamente. É certo que quando se diz que dá um hotel óptimo porque já lá tem as celas monásticas, é esquecido que o hotel vem com as infraestruturas todas. Hoje em dia, com climatização, com ar condicionado, etc., tem de se dar cabo de tudo para voltar a fingir que a coisa não aconteceu. Mas isto para dizer o quê? Que no meio desse esforço, registar a beleza do sistema construtivo, da complexidade das entranhas do edifício, é bonito, e isso pode ser quase a metáfora das várias fases que se vêem e do que é estar desperto. E estando desperto, estando aberto, todos os momentos podem ter beleza, a aproximação ao lugar.
Depois, há outra coisa muito bonita que o Eduardo refere. Ele diz que o Távora lhe tinha ensinado que: «quando você tiver uma dúvida, volte lá ao lugar e fique lá à espera da resposta, que a resposta está lá». E é incrível, porque isso passa-se muito no nosso trabalho: metade das vezes, o projecto parece que corre sozinho. Põe-se a questão, põe-se a equação, e o projecto começa a andar e vai. Mas há outros projectos que não vão, ficam ali entalados a certa altura por alguma razão, e um dos caminhos muito bonitos é então um tipo voltar ao lugar e ver se o lugar fala, se ele tem a resposta para a dúvida. Enfim, de facto estes livros são muito inspiradores. E não falámos do objecto livro enquanto peça artística, porque entre o seu conteúdo, o seu design gráfico, o gosto de o ter na mão, de o folhear, o ritmo, é quase como uma partitura musical.
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