Livros Fundação Gramaxo e Claustro do Rachadouro
Teresa Siza
Porto, 28 de Novembro de 2023
Estes são livros de arquitectura. Toda a sua estrutura assim os caracteriza. Têm boas e esclarecedoras entrevistas — que apreciei ler —, textos críticos, esquissos, desenhos, desenhos técnicos. Sobre isto, nada quero — nem posso — dizer. Não gosto de meter foice em seara alheia.
Mas saúdo a ideia do editor: convidar para os projectos dois fotógrafos com provas dadas, ainda que não seja exactamente pela fotografia de arquitectura que melhor os conhecemos. Desafio para eles, que assim provam que os melhores podem fazer de tudo. E bem.
Como é natural nos livros de arquitectura, estes têm muitas — e muito boas — fotografias. A relação da fotografia com a arquitectura é primordial na história da fotografia. Em primeiro lugar, por uma questão técnica, como é evidente. As obras construídas estão lá, quietinhas; em tempos de poses longuíssimas, não punham grandes problemas. E ofereceram a um público encantado com a novidade as primeiras «figuras de espanto». Fotógrafos foram enviados a lugares longínquos e então ainda exóticos — pensemos, por exemplo, nas «Excursões Daguerreanas», publicadas em Paris em 1842, na «Mission Héliographique», levantamento do património francês (1851), ou nas imagens de Frith no Egipto (1856–1859) — e presentearam o público europeu com um sedutor desconhecido. A fotografia era, então, uma novidade muito recente e teria, necessariamente, de receber influências de outras formas de transformar e representar o visível e o invisível. Foi beber à pintura, ao desenho, ao desenho de arquitectura, e não é indiferente à visão da arquitectura cedo definida pelos gregos.
Mas esta relação é mais profunda. Fotografia e arquitectura têm em comum duas evidências: o controlo da luz e a estruturação das formas no espaço. São ainda dois dispositivos de abrigo — da alma, com o relicário que a imagem fotográfica representa, guardando o inconcebível metamorfismo da ausência-presença; do corpo, que deixa circular, reconhecendo, e protege da visibilidade e invisibilidade do mundo.
A fotografia de uma obra auxilia o profissional da arquitectura não apenas na recordação de um projecto; é instrumento essencial mesmo antes desse projecto (o Eduardo desenha sobre as fotografias de prospecção), durante a obra e depois de terminada. Nenhum arquitecto o nega, mesmo aqueles que nunca fotografam, mesmo aqueles para quem o lápis ou a Bic preta é o instrumento primordial.
Conhecemos António Júlio Duarte pelas suas imagens de gente. Nas suas próprias palavras: «Fotografo cidades movimentadas e pessoas atribuladas, criaturas encurraladas e coisas improváveis. São o meu mapa do mundo. Sou atraído por elas, movido pela simpatia e pelo desassossego que partilhamos. Travo conhecimento com estes seres inquietos nos seus afazeres triviais e disposições quotidianas, neles pressinto e tento captar a tensão vital que é o desejo universal pela vida e pelo sentido.»
Aqui, confronta-se com a arquitectura do Álvaro: nada de atribulações, nada de inquietude, nada de improvável, nenhum desassossego. Faz então a opção do preto-e-branco — boa opção. A paisagem é-nos dada como paz, as arquitecturas repousam nela sem a ferir. As pessoas não estão [ainda] lá, mas antecipa-as e oferece-lhes modos, ângulos privilegiados para virem a desfrutar do lugar. Procura o detalhe: a fotografia é a arte do corte e do detalhe, como o é a arquitectura do Álvaro. E pelo meio, pisca brevemente, de passagem, o olho à história da construção — o que já não se verá mais, o que fica escondido. Pelo jogo de luzes, mostra que compreendeu o que o arquitecto quis — sempre quer — fazer. Finalmente, sem um único retrato, faz o retrato do Álvaro: pelo escritório, o seu lugar mais sagrado, onde não falta o café e o cigarro, algumas sempre presentes referências, a organizada trapalhada.
É bom regressar a este António Júlio. Tranquilo? Duvido.
Também André Príncipe não é propriamente identificado como fotógrafo de arquitectura. Nem sequer como documentarista, embora ele tenha um entendimento muito especial — e muito certo! — de documento, nunca o isentando da marca autoral. Interessa-lhe a qualidade poética das imagens e isso certamente fará delas bons documentos. E isso todas estas têm. A disciplina que sempre se impõe, aplicou-a nesta história que construiu, à medida que também se construía o projecto de arquitectura. A confusão das primeiras fases vai, pela sequenciação, dando lugar a imagens mais «clássicas», assim incluindo, naturalmente, a dimensão tempo, que tanto preza. «Gosto quando se sente o tempo na fotografia, gosto que a fotografia fique datada. Isso torna as coisas mais exigentes.» Assim se torna aparente o que sempre achei que era: o «menino» que — alguns — julgavam rebelde, e que nunca foi senão o autor com olhar muito próprio, revela-se, para quem tinha dúvidas, um autor maduro, capaz de transformar qualquer encomenda numa obra acabada. Nunca me enganou.
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