Testemunho de António Júlio Duarte no Fórum da Maia
António Júlio Duarte
Fórum da Maia, 22 de Março de 2025
I.
Este trabalho parte de um convite do editor, Nuno Miguel Borges, para produzir um ensaio fotográfico para o livro de acompanhamento da obra da Fundação [Gramaxo]. O outro livro [Terminal de Cruzeiros de Lisboa] em que tinha participado também partiu dos mesmos princípios: começar os trabalhos antes de a obra arrancar. Portanto, realizar um levantamento do sítio onde a obra vai ser feita, e depois acompanhar todo o processo de construção até à conclusão. Nestes ensaios, houve igualmente a possibilidade de tentar sair um pouco do universo do seguimento da obra e encontrar algumas coisas que tivessem que ver com o próprio arquitecto, ou com qualquer coisa única na construção do edifício. No caso do Terminal de Cruzeiros, foram os materiais usados para construir o material principal da construção [dos alçados], uma mistura de cimento com cortiça, um material pouco usado. Por isso, há imagens fora do registo da construção e que estão relacionadas com a cortiça e com o processo de fabricação do cimento. No caso do livro da Fundação Gramaxo, foi mais procurar temas importantes no trabalho de Álvaro Siza, como o sítio onde se fazem os móveis, ou a pedreira de onde sai o mármore que o arquitecto gosta de usar nas suas obras. Portanto, há imagens que saem um bocado dessa cronologia, dessa linha, dessa linearidade.
O trabalho inicial centrou-se muito no levantamento do parque ― o edifício ia ser feito num parque na Maia ― e em perceber, mais ou menos, como é que o edifício ia modificar o terreno; e ir acompanhando as fases da obra identificando o que será importante ou não. Geralmente, trabalho menos a preto e branco, mas neste caso achei que seria uma boa opção, por o edifício ser bastante discreto, e também pelo excesso de verde e de azul que iria ser previsível nas imagens. O uso do preto e branco pareceu-me ser mais fiel, até ao desenho do edifício, e ao uso da luz, que é uma das marcas do trabalho do Siza.
Depois, houve outra preocupação: de certa maneira, eu queria que houvesse no livro uma espécie de retrato do Siza sem o fotografar, e assim apareceram as imagens que fecham a exposição. São imagens do ateliê, do espaço de trabalho, são uma espécie de retrato pela ausência, onde estão várias coisas características, ou que se associam muito à imagem pública do Álvaro Siza: o maço de cigarros, a chávena de café, os desenhos no ateliê ― para mim, suficientes para fazer um retrato de alguém. Há também uma atenção ao mobiliário da Fundação Gramaxo e ao sítio onde esse mobiliário foi feito, porque tudo o que é equipamentos da Fundação foi desenhado pelo Siza. Alias, a própria disposição, a curadoria da parte museológica da Fundação, é feita pelo Álvaro Siza, portanto tudo no edifício tem a assinatura dele, daí haver também a preocupação de fotografar as salas já prontas para a visita pública.
II.
Há uma questão em que penso muitas vezes, porque a minha formação também não é de arquitectura e vejo sempre muito os edifícios em virtude da sua função, mais do que do desenho. Penso em como é que isto vai ser ocupado. Como é que as pessoas irão ocupar este espaço? Como é que isso depois, muitas vezes, até transforma os próprios edifícios, ou seja, o uso é dado pelas pessoas e como esse uso altera entretanto os espaços.
Aqui, há um lado que tem que ver com a intenção do livro, com o chegar a uma conclusão de uma ideia, de um pensamento, e depois acho que há um lado prático, que tem que ver com o tempo em que o livro tem de sair. Portanto, estes trabalhos já demoram quatro a cinco anos, ou seja, o tempo que o edifício demora a ser construído, e esperar que depois haja uma verdadeira utilização do edifício e que isso possa ser fotografado iria levar muito mais tempo. Custam-me um bocado aquelas fotografias em que aparecem pessoas a habitar os edifícios e que são um pouco como figurantes de cinema ― nós percebemos que as pessoas estão ali a cumprir uma função de exemplificar como vai ser a utilização, são pessoas que estão ali contratadas, e isso tem que ver com outras coisas, tem que ver com direitos de imagem. As pessoas que aparecem nas imagens hoje em dia estão muito conscientes do uso das imagens, o que torna tudo bem mais complicado, mas isso, para mim, torna as imagens muito falsas, porque ficam ali numa espécie de limbo de uma coisa que não é verdadeira, e até se nota na própria linguagem corporal que são pessoas a cumprir um papel de visitantes de um museu, ou de pessoas que passam por um corredor, ou outra coisa qualquer.
É uma questão que ponho para mim mesmo durante a construção. Por exemplo, na Fundação Gramaxo foi uma coisa em que pensei: faz sentido estarem presentes as pessoas que estão a fazer este edifício? E não fazia muito sentido, pela escala, pela dimensão, e até por ser uma obra muito modesta ― de certa maneira, com muito poucos operários, uma parte foi feita durante a Covid-19. Ao contrário, por exemplo, do trabalho do Terminal de Cruzeiros, em que as pessoas estão lá porque acho que é importante que estejam lá, porque dão a escala da obra, é uma obra em que é preciso perceber o espaço e a dimensão do edifício, e por isso é importante para mim ter lá as pessoas. E também porque dou grande importância ao fazer ou a quem faz, talvez por haver uma tradição mais documental e humanista da fotografia e não tanto comercial, em que me preocupo se aquela fotografia vende o edifício ou não ― isso é a última das minhas preocupações, aliás nunca é uma preocupação sequer, portanto também me custa que esse uso das pessoas ― que parecem estar a usar o edifício, não o estando a usar realmente ― entre numa linguagem que não me interessa, uma linguagem que já tem muito mais que ver com uma publicitação do edifício do que com o verdadeiro uso. Porém, é uma questão que está sempre presente, e tenho trabalhos em curso onde é importante que esse uso seja o uso verdadeiro. Se houver em termos práticos tempo para o fazer… prazos de publicação de impressão é uma coisa que gostaria de incluir em trabalhos futuros. Nestes, não só não foi possível como não senti necessidade, porque acho que as fotografias, depois da disposição museológica, já são suficientes, já trazem uma certa presença ao edifício, para lá do desenho e dessas coisas todas.